sexta-feira, 3 de junho de 2011

Eu gosto. [5]

Com mais de 30 anos de profissão, Ivaldo Bertazzo, coreógrafo, professor, criador, bailarino é primeiro de tudo um pensador do corpo. Com aguçada percepção e sensibilidade da poesia corporal já coreografou dezenas de espetáculos, produziu, dirigiu, preparou e escreveu livros onde o movimento humano é o tema principal. Inovador, consegue mesclar dançarinos profissionais e cidadãos comuns, dividindo o mesmo palco.
Para escrever esse artigo me importa mais destacar aquilo que acho fundamental: seu pensamento único e contemporâneo além de sua metodologia de trabalho, o Método Bertazzo –, criado por ele e uma equipe de fisioterapeutas. Uma amostra desse pensamento inovador podemos saborear abaixo, numa entrevista realizada por Nirlando Beirão.


[Nirlando] Desde a Grécia, os Jogos Olímpicos estão aí como que para exaltar o corpo e a superação dos limites do homem...
[Bertazzo] É, e de vez em quando, para reforçar um sentido político. É bom ficar atento. Deve acontecer de novo, em Pequim. O exemplo mais escandaloso disso aconteceu na Alemanha de 1936. A Olimpíada de Berlim, de Hitler e da Alemanha nazista, era para ser a selebração física do homem. Do homem branco, ariano, bem entendido. Aí vem um negro (Jesse Owens, vencedos dos 100 metros rasos) e acaba com a festa. Vence a principal prova no meio daquele loirinhos todos. A Leni Reifenstahl (fotógrafa e cineasta) estava lá para documentar a supremacia nazista. Registrou, com raro talento, o constrangimento nazista.

[Nirlando] Ela que tinha simpatia pelo regime...
[Bertazzo] É o que dizem e o que parece. Mas o registro fotográfico e cinematográfico da Leni Reifenstahl é preciso. E, depois da guerra, acusada de colaboracionista e simpatizante, acaboou indo fotografar, lá na África,os sudaneses da etnia nuba. Desde os jogos de Berlim ela deve ter ficadoo impressionada com a perfeição atlética dos africanos. Eles, sim, são racialmente superiores, essa é a ironia que o esporte revela.

[Nirlando] Em que sentido?
[Bertazzo] Repare no corpo desses quenianos, etíopes, que correm provas de longo curso, que disputam a maratona. São longilíneos, esguios, altos, tem a configuração muscular de coxa-femur mais soberba que existe. As pernas não flexionam, dão mais equilíbrio, não sobrecarregam os músculos ao longo da corrida. Do ponto de vista corporal, os negros são a raça mais evoluída. O africano é o bípede de excelência.

[Nirlando] Olimpíada, então, tem sempre um caráter guerreiro, é isso?
[Bertazzo] O esporte visa a vitória. É sempre uma competição. Um apelo à performance. Diferente da dança. Que é também superação com controle – mas que busca a beleza plástica e o encantamento espiritual. Embora, pensando bem, a gente perceba que mesmo a dança virou também, nesses tempos de globalização, um território de competição e rivalidade. A dança contemporanea segue a aceleração do home comtemporaneo. Estamos perdendo o glamur tranquilo do bailarino e da bailarina. É ruim para a arte.

[Nirlando] Você já criou alguma coreografia baseada no esporte?
[Bertazzo] Não. Aliás, usei capoeira, sim. Capoeirista com bailarina clássica.

[Nirlando] Mas capoeira não é só esporte, não é? É também dança e luta. Ou pelo menos simulação de luta.
[Bertazzo] Simulação de luta, como, aliás, o judô. Os juizes ficam alí olhando e é o toque que determina a pontuação. Se o sujeito usasse o golpe de ataque, sem limite, mataria o adversário. Uma pernada, na capoeira, é capaz de arrancar a sua cabeça. Como no esporte de luta não se pode usar toda a potência muscular, você tem que ter um total controle do movimento. A força bruta é fácil. A graça do esporte de luta é disciplinar, com elegância, esse ímpeto selvagem, primitivo.

[Nirlando] Como na esgrima...
[Bertazzo] Touché! – e acabou. Já imaginou se fosse para valer?

[Nirlando] Quer dizer que, para preservar a beleza do movimento, seja na dança ou no esporte, o desafio é desafiar o bicho bravo que há dentro de nós.
[Bertazzo] O corpo se exprime por uma força muscular antagônica. Eu faço um movimento em um determinado sentido, mas tenho mecanismos educador para brecar esse mesmo movimento. Organicamente, meu corpo opera por oposição, através de reações dialéticas de ação e negação. Isso parece doutrina oriental, mas é como, de fato, somos. Só assim conseguimos a harmonia, que é a minha concepção de beleza. Veja a postura de um atleta prestes a largar para uma prova curta, a de, digamos, 100 metros rasos. Ele tem o corpo crispado, a pressão da mão no solo e a do pé no aparelho de largada criando uma unidade de força, contida, que eletriza os múculos – força que vai e volta e, de repente, ao sinal, é liberada. O corredor solta a pressão, dá o arranque e o corpo dispara. Mas o atleta perderia o quilibrio e se esborracharia no chão se, mesmo numa situação de extrema superação, seu corpo não estivesse em em vigilante atitude de organização, cada parte atuando como unidade funcional de um todo.

[Nirlando] Em resumo: numa competição aguda, não basta o ímpeto, o vigor, a preparação. O corpo é também inteligência.
[Bertazzo] Vou dar outro exemplo familiar: o futebol. O que é que faz a graça do futebol? O drible, a embaixada, a destreza brincalhona com a bola. Se o jogador preservasse mais essa arte, não se machucaria tanto. A bola, e não ele, passa a ser o centro de equilíbrio. Aí está a sabedoria. É essa a diferença entre os craques e os medíocres. O grande jogador e a bola formam o mesmo conjunto. Por isso, não há que a tire dele.

[Nirlando] O que o esportista poderia aprender com o coreógrafo?
[Bertazzo] Há muita coisa para se fazer para que o corpe esteja em boa forma. A tecnologia hoje é avançadíssima e é curioso como, aí, de novo, o futebol é o último esporte a se aproveitar. Mas não quero sugerir que jogador deva fazer ballet. Longe disso. Há coisas até antagônicas. O pé do bailarino estica, o do futebolista flexiona – se não, não teria potencia para o chute. Mas volto ao meu ponto: o atleta tem de ter a percepção do controle corporal. O lançador de disco, por exemplo: existe desde a antiguidade clássica, desde o discóbolo, movimento mais complexo, mais tortuoso e mais bonito? No salto em altura, para o corpo passar pela tarrafa ele precisa fazer um arco, descrever uma elipse, apoiando-se em uma unidade de força que o atleta não pode soltar de uma vez. Dá o arranque, controla e voa. É uma coreografia aparentemente impossível.

[Nirlando] E os desafios de moda? Você ve aí dança, coreografia?
[Bertazzo] Não sou de ir a desfiles, mas o que sinto é que, ali, o corpo não é para ser mostrado, a roupa, sim. As modelos são cabides, é como se elas tivessem um corpo invisível. Mesmo sendo aquelas bonitas que são.


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Para saber mais: O site do Ivaldo aqui.

Para ler: Cidadão Corpo e Corpo Vivo – à venda nas melhores livrarias.

Para assistir: Partes de alguns de seus espetáculos, Kashmir Bouquet, Mãe Gentil, Milagrimas, Mar de Gente, Samwaad Rua do Encontro, Cidadão Dançante e Corpo Vivo, seu trabalho mais recente.

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